terça-feira, 23 de junho de 2015

As vezes, eu acordo com o meu celular tocando e a voz dela entra em mim como um arrepio que me congela e eu ouço as palavras se repetirem uma à uma, como naquela quinta-feira à tarde. O coração aperta e a garganta fecha e um peso que não se explica, entra em mim e eu tenho vontade de gemer em agonia.
Então eu viro para o lado e vejo que meu celular não está ali e eu sonhei. Alucinei. Lembrei. Vai saber.

Não durmo mais.

Vez ou outra, alguém me diz que o pior já passou e agora é seguir com a vida. E eu sinto raiva. Sinto uma raiva que eu desconhecia e queria poder desconhecer de novo. 
E eu me lembro da parede branca. Eu me lembro de sair com os sapatos na mão e pela porta dos fundos no meio da madrugada. De ligar o carro e sair com a lanterna apagada com medo de ser pega. Me lembro do ataque de ansiedade disfarçado em frio.
E eu me pergunto, dentro de mim, como você segue normalmente do jeito que te falam para seguir, quando tudo em você é ainda tão fresco. Tão solto.

Tem dias em que tudo segue normal de novo. Semanas. E você sente alívio. Pensa que, finalmente, acabou.
E, numa festa junina, um bebê a confunde e a chama de mamãe e vocês congelam. Ela segura o choro e você lembra do ultrasom e, por um minuto, é como se tivessem puxado sua pele e trocado ela de lado.

Não existe arrependimento.
Não existe dúvida.
Não existe vontade de voltar atrás.

Existe o resto.
Existe todo o resto.
E ele vai e vem. Sem marca de tempo. Sem cronograma.
Está ali até não estar mais.

Vez ou outra, você se pergunta se esse resto vai te seguir até você aceitar que ele é parte sua agora.

Não sabe.

Enquanto isso, se remenda. Acomoda a dor. Deixa ela ali. Espera.

Quem sabe, um dia desses, você volta a dormir sem lembrar de cada um daqueles dias em detalhe. Quem sabe também, o telefone toca e, um dia desses, sua mão não gela e você não sente nenhum pânico tomar conta. Quem sabe, um dia desses, você deixa todas as mentiras em um canto esquecido. Quem sabe, um dia desses, você não precise mais continuar mentindo.
Quem sabe, um dia desses, você esquece o sofá preto e aqueles 40 minutos.
Quem sabe, um dia desses, você para de sonhar com aquele teste e com ela doente porque não deu certo.
Quem sabe, um dia desses, esse buraco sai e não te alcança mais.

Quem sabe.






quarta-feira, 6 de maio de 2015

 
   Desaprendi a respirar por alguns segundos quando soube de você. O choro mais desesperado e ensurdecedor veio num tom baixo que me assombra o tempo todo, criança. E eu sinto enjoo. Falta ar. Sobra água.
  Quando eu era mais nova e perdi um colega, acreditei não existir silêncio mais alto do que daquele protesto em memória dele. Ou arrepio igual. Vi o mundo acabar um pouco.
  Mas aí recebi aquele telefonema e a perspectiva veio como um chute na cara. Tudo perdeu um pouco de vida.
Cada análise era um teste - não deixar o corpo dominar e o pânico tomar conta. Era difícil controlar, criança. Mas não existia espaço pra nada.
  Quando eu soube de você, criança, eu só pensei em como resolver logo tudo. Dar um jeito. Te vi como um pesadelo surreal, criança. Desculpe.
 Arranjei tudo. Deixei tudo certo. Ignorei o pontinho do ultra som. Tentei não conseguir te ver. Não existia tempo de achar nada, pensar em nada. Era certeiro.
Durante todos os dias desde que soube de você, a única forma de dormir, era com a tv ligada. Som alto. Alto o suficiente pra cobrir meus pensamentos. Pra cobrir o que tinha de você ali.
Você veio carregando e despejando medo. E saindo as escondidas no meio da madrugada, descobri que o corpo, as vezes, treme incansável e involuntariamente. Disse que era frio. Era pânico.
"E se, e se, e se" me seguiram até a hora em que sentei no sofá e esperei. E todos os "e se" viraram uma possibilidade.
  Olha só, criança, descobri um novo fim de mundo numa parede branca com um quadro da santa ceia, cada vez que ouvia apitos ininterruptos e meu coração gelava em pânico.
 E se, e se, e se.
 10 minutos.
 Parede branca.
 20 minutos.
 Ouvido colado na porta da sala.
 30 minutos.
 Será que tem alguém acordado pra falar de qualquer coisa.
 40 minutos e todas as promessas possíveis.
 E fim.
 Alívio.
 Mas eu só queria te dizer, que dentro do alívio, veio dor.
 E dentro do que ficou, do pânico, alívio e todo o resto, a dor vai ficar, ta criança?
 E a gente vai lembrar.
 Vai sempre lembrar.
 Desculpa, criança. É que não era hora.
 Desculpa.